sexta-feira, 15 de abril de 2011


ROLETA RUSSA DIVINA
(Ou o mistério da criação)
Deus criou o universo e o homem como um jogo para se distrair da monotonia da eternidade
Perguntamos, muitas vezes, qual seria a lógica da existência do homem sem a fé na existência de um deus. Mas porque não perguntar qual seria a lógica da existência de deus se ele não criasse nada. Então, num dado momento da sua longa eternidade, decidiu criar qualquer coisa, tipo um universo com umas esferas a girar no espaço profundo e alguns seres vivos, dotados de mais ou menos inteligência que lhes permitisse adaptarem-se àquele universo. Mas, já agora, pomos algumas questões prévias a esse acto de criação; como saber, por exemplo, porque é que deus resolveu criar o universo e o homem naquele preciso momento em que o fez (admitamos que por ocasião do big bang) e não em qualquer outro momento anterior da sua eternidade? E, desde esse acto criador até ao presente não criou mais nada? Ou não virá a criar?
Perguntarão alguns, todos os crentes em deus e especialmente todas as hierarquias das igrejas, que interesse têm estas questões para a fé. De facto, não têm; para quem acredita, não interessa fundamentar racionalmente a sua fé, porque a fé é, segundo dizem, um dom de deus e, portanto, ou se tem ou não; e mais, felizes dos que têm esse dom e infelizes de quem o não tem. Posto o problema nessa vertente, seria estultícia minha tentar pensar, raciocinar ou debater esse tema. De facto, os crentes, igrejas e hierarquias respectivas, sempre difundiram a sua fé e pretenderam convencer os “pagãos” da bondade da mesma, usando argumentos morais, históricos, mas também argumentos racionais. E todas as crenças e igrejas o fizeram historicamente como se o seu deus, crenças e sistemas fossem os únicos verdadeiros, fiáveis e salvadores. Mas, ao contrário, já não aceitam que aqueles “pagãos” discutam a crença no seu deus com argumentos racionais e lógicos, como se todos estes tivessem de aceitar o seu sistema sem discussão ou mesmo sem hipótese de duvidarem, mesmo que no seu íntimo.
Corolário máximo dessa impossibilidade de discutir racionalmente as crenças fundamentais do cristianismo é o fenómeno da transubstanciação (a mudança da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, no acto da consagração), aceite pela igreja católica, ortodoxa e anglicana e nova apostólica. Fenómeno para além de toda a capacidade de compreensão humana, que tanto interessa aos crentes cristãos como ponto central da sua fé; mas fenómeno indiscutível para esses mesmos cristãos e totalmente incompreensível para todos os não crentes. Nesse contexto, não é só a fé que é indiscutível, mas toda a prática religiosa associada à mesma. Todas as crenças e todos os “mistérios” da fé não são demasiado importantes, em si mesmos, para os não crentes; apenas o são na medida em que os crentes caem em círculos viciados de pensamentos, raciocínios e conclusões que apenas são válidos para que tem fé, mas, depois, não conseguem interagir em termos quer de pensamento quer de comportamento com aqueles que não estão integrados no seu sistema “perfeito”.
Verdade é que não aceitam que a discussão se ponha nesse ponto e com essa metodologia porque sabem que não têm respostas para todas as questões levantadas por espíritos livres da sua ditadura intelectual.
Num ponto concordo com eles, é que a fé não é racional, não tem qualquer fundamento lógico, nem a existência de deus é demonstrável axiologicamente. Perguntar-se-á então porque é que, desde sempre, o homem teve necessidade de acreditar num deus qualquer e, porque é que, de facto, a maioria das pessoas, em todos os tempos, acreditou na sua existência. Haverá explicações diversas a começar pelas próprias igrejas e crenças que dirão que esse facto é, desde logo, prova da existência de deus, numa lógica de incluir o significando no significado, isto é, é assim porque é. Haverá explicações sociológicas, filosóficas, físicas e outras. Para mim há uma explicação que valerá tanto como as outras porque é fruto mais da reflexão e observação da natureza humana e do próprio fenómeno da fé, vivido, em concreto, pelas pessoas. Será uma explicação de cariz sociológico. É pacífico que a natureza humana é frágil, quer ao nível da integração no espaço físico onde está instalada, quer ao nível da integração social e profissional; a natureza de cada indivíduo é pouco resistente ao nível de exigência que a natureza lhe coloca, obrigando-o a esforços enormes para se manter integrado no grupo, na família, na empresa e, em geral, na sociedade. Essa integração requer um esforço constante e difícil quer ao nível físico quer ao psicológico. E toda a pessoa precisa, para tentar sobreviver, de recorrer a ajudas diversas. Sabe-se que o princípio geral para a sobrevivência de toda a natureza (seres vivos ou …) é a capacidade de adaptação ao meio em que estão inseridos; os que conseguirem adaptar-se terão todas as hipóteses de sobrevivência e os que não se adaptarem não sobreviverão. Ora, na minha perspectiva, a fé é um meio de adaptação ao meio hostil em que todas as pessoas se movem; é uma forma de a existência (concreta, do dia a dia) se manter a um nível suportável; desde logo, esta tese fundamenta-se na história das crenças do homem que começaram por acreditar e adorar fenómenos da natureza: o sol, o vento, o mar, etc; todos com as mesmas características: com expressões poderosas, misteriosas (à data), com capacidade de produzir efeitos terríveis e benéficos e, não menos importante, de influenciar, para o bem e para o mal, todos os acontecimentos da vida das pessoas, mesmo os mais insignificantes. A essa luz da compreensão da crença dos antigos nos seus deuses, a crença actual no deus de todos os crentes, sejam cristãos ou não, tem a mesma fundamentação psicológica e sociológica, ou seja, o deus dos cristãos é um ser poderoso, misterioso, que castiga, que premeia e que determina todos os acontecimentos do mundo e da vida das pessoas, por mais insignificantes que sejam.
Fenómeno espantoso é aquele que leva os crentes a rezar pela felicidade dos seus entes queridos, para a cura numa doença grave, mas também para ganharem dinheiro nos negócios, para o seu filho ter êxito nos exames, para que o seu clube ganhe um qualquer jogo, num pressuposto infalível (para eles) de que deus intervém em todos os actos e momentos da sua vida, para os proteger (é praticamente o regresso ao ventre materno, como porto seguro contra todas as intempéries). Não deixa de ser um egoísmo e oportunismo descarado, porque alguns até pensam que o seu deus os ajuda a eles e não aos outros que não acreditam nele.
A fé é, assim, o instrumento necessário para a sobrevivência humana, para poder ultrapassar todas as dúvidas, todas as emoções negativas; tanto assim é que, há quem defenda que no genoma humano há um gene da fé, como elemento indispensável à sobrevivência da humanidade (organização e respeito pelas normas impostas).
Voltando à tese inicial, deus criou o universo e o homem; e propôs-se um jogo: dava vida eterna ao homem, mas a felicidade ou infelicidade dessa eternidade dependia do desempenho durante um curto período de 40, 60, 70 ou pouco mais anos. Nesse curtíssimo período de experiência, o homem tinha de demonstrar se merecia ou não ser feliz por toda a eternidade. E estabeleceu algumas regras do jogo às quais o homem tinha de obedecer, tipo rally paper. Por exemplo, quem quisesse ser feliz por toda a eternidade, não poderia matar, roubar ou fornicar a mulher do vizinho. Mas como em qualquer jogo, decorridos uns tempos (no caso, uns milhões de anos) alterou algumas regras. Mandou o filho à frente que introduziu alguns bónus e penalizações; aqueles, dependentes do desempenho e estes do mero acaso; por exemplo, quem quisesse ser feliz na eternidade teria que ser submetido a um pequeno ritual de um banho acompanhado de umas palavras mágicas; quem não se submetesse a esse ritual não seria feliz, mas também não seria infeliz. Quer dizer, em princípio estaria condenado, mas … como a misericórdia de deus é infinita, teria sempre uma hipótese de salvação.
Criou também uma escola para formar formadores que teriam a obrigação de impor e vigiar pela aplicação das novas regras, com mais bónus e penalizações. Aqui entramos na actuação da igreja, ao longo dos séculos, a qual desenvolveu imensas variações àquele jogo, com alguns bónus, mas, especialmente, com múltiplas penalizações.

Sem comentários:

Enviar um comentário